Encontro inédito reúne pesquisadores do Brasil, vinculados ao CEPID Bridge, financiado pela FAPESP, e da Austrália e dá voz a comunidades tradicionais, catadores e cooperativas para construir soluções práticas (imagem: Freepik*)

Simpósio em São Carlos busca unir inovação circular e justiça social antes da COP30

04 de novembro de 2025

Roseli Andrion | Pesquisa para Inovação – A economia circular no Brasil nunca foi apenas sobre máquinas de reciclagem e números espetaculares. Ela pulsa diariamente nas mãos de catadores autônomos, nas águas cuidadas por caiçaras e nas vozes de comunidades indígenas e quilombolas que, há gerações, praticam a sustentabilidade por instinto e necessidade.

Milhares de trabalhadores informais percorrem as ruas brasileiras antes do amanhecer para revirar lixeiras. Invisíveis para a maioria, eles são protagonistas essenciais para o planeta, mas trabalham sem equipamento adequado, sem proteção social e, muitas vezes, ganham menos do que o salário mínimo. Eles praticam a sabedoria que vem da natureza e que empresas e governos precisam aprender: como fazer a economia girar em círculos.

Para conectar essa sabedoria popular ao rigor científico, a Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP) abre as portas amanhã (05) e quinta-feira (06/11) e oferece a eles o palco principal do Simpósio Internacional Austrália–Brasil: Ecossistemas de Inovação Circular. O objetivo do encontro é construir, de forma conjunta, soluções que garantam um futuro mais verde e, inseparavelmente, justiça social.

Aldo Roberto Ometto, professor associado da EESC-USP, coordenador de inovação e ecossistemas circulares do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão Building Radical Innovation and Disruption for Global Ecosystems (CEPID Bridge) e presidente da comissão organizadora do simpósio, lembra que grande parte da economia circular no Brasil é exercida por cooperativas e catadores. O Brigde é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP. “É fundamental, então, que venha deles a inspiração para uma transição sistêmica que integre regeneração, negócios, inclusão e clima.”

Túlio Queijo de Lima, engenheiro ambiental e pesquisador de pós-doutorado em engenharia de produção na EESC-USP pelo CEPID Bridge, atua na organização da reunião e explica a filosofia da conferência. O primeiro dia será dedicado a ouvir as vozes da comunidade. “Não podemos partir do princípio de que nós, que estamos na academia, somos os solucionadores de todos os problemas. É preciso entender profundamente a realidade e os desafios dos atores desses ecossistemas antes de falar sobre tecnologia e investimento.”

Coordenado pela EESC-USP, pelo CEPID Bridge e pela Griffith University, da Austrália, o encontro pretende criar inovações radicais e disruptivas para a gestão inclusiva de ecossistemas circulares. O nome do CEPID Bridge não é casual: “Bridge” (ponte, em inglês) reflete seu objetivo de conectar atores para a transformação. A reunião em São Carlos busca justamente essa disrupção: construir soluções com quem está na linha de frente em vez de oferecê-las de cima para baixo.

Parceria com a Austrália

A ideia do simpósio surgiu em 2023, quando Ometto atuava como professor visitante na Griffith University, com bolsas da FAPESP e do Programa Institucional de Internacionalização da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes-PrInt). Ele pesquisa economia circular, um conceito que propõe transformar o fluxo linear dos produtos de “produzir, usar e descartar” em sistemas que adicionem e recuperem valor sem depender da extração de novos recursos naturais e que possam produzir impactos positivos de longo prazo.

Na Austrália, Ometto conheceu a professora Anya Phelan, especialista em empreendedorismo social da Griffith Business School. Como no Brasil a economia circular é sustentada principalmente por catadores informais e cooperativas, ele percebeu que o conhecimento de Anya poderia causar um impacto importante por aqui. “Quando o Ministério de Relações Internacionais australiano, por meio do Conselho para as Relações entre a Austrália e a América Latina, o Coalar, lançou um edital para financiar iniciativas de cooperação, vimos a oportunidade de trazer a visão de inovação social deles para o contexto brasileiro.”

A proposta foi aprovada e uma comitiva de professores, pesquisadores, empresários e especialistas australianos desembarca no Brasil em novembro para o simpósio na EESC-USP. Eles vão compartilhar experiências em economia circular aplicada a comunidades remotas, indígenas e em situação de vulnerabilidade, além de modelos de negócios inovadores e oportunidades de empreendedorismo social com tecnologias acessíveis.

A parceria com os australianos não é aleatória: Brasil e Austrália compartilham características importantes, como economias baseadas principalmente no setor primário, grande parte em clima tropical, e desafios importantes nas transições climática e regenerativa. Uma das principais diferenças, entretanto, é que, na Austrália, o modelo de economia circular está mais consolidado em infraestrutura, políticas públicas e tecnologias. Por aqui, esse avanço institucional ainda é incipiente.

Segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2024, divulgado pela Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), a taxa de reciclagem do país foi de apenas 8% dos 81 milhões de toneladas de resíduos produzidos em 2023. O estudo aponta que, desses 8%, dois terços são coletados por catadores, que garantem que esse material não vá para aterros sanitários. Quando o trabalho é feito por cooperativas, a taxa de reciclagem supera 80% – algumas chegam a 97% de aproveitamento dos materiais coletados. “Eles são os protagonistas da economia circular no Brasil há décadas, mas seguem invisibilizados”, aponta Ometto.

O Anuário da Reciclagem de 2024 indica que existem mais de 3 mil cooperativas de catadores espalhadas pelo país e que elas reúnem aproximadamente 70 mil trabalhadores organizados. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), essas organizações atuam em mais de 1,1 mil municípios brasileiros.

Mudança de paradigmas

O simpósio foi estruturado de forma estratégica. No primeiro dia, quando serão ouvidas as vozes da comunidade, participam o representante de uma aldeia indígena de Bertioga (que atua na regeneração costeira), catadores autônomos e cooperativas de materiais recicláveis. Haverá, ainda, a apresentação de soluções de cooperativas brasileiras: uma delas, de Araraquara (SP), desenvolveu, em parceria com o Enactus da USP de São Carlos, equipamentos de moagem, extrusão e injeção para agregar valor aos materiais reciclados.

Além disso, as professoras Cara Beal, da Griffith University, e Roberta de Castro Souza Pião, do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), vão abordar soluções inovadoras em comunidades e justiça social. “As apresentações da manhã vão balizar as conversas da tarde, quando haverá um workshop com esses atores”, explica Lima. Nesse workshop, os participantes construirão cenários futuros em conjunto: vão identificar necessidades reais, mapear desafios e propor caminhos possíveis para a transição.

O segundo dia, por sua vez, tem tom propositivo, com enfoque em empreendedorismo social, inovação de impacto e soluções regenerativas. Representantes da Austrália apresentarão soluções tecnológicas e casos práticos de inovação sociotécnica já implementados em comunidades remotas. A professora Anya Phelan e o professor Leonardo Gomes, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), abordarão o empreendedorismo social e a inovação em ecossistemas regenerativos.

A Marulho, organização da região da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, que recupera plásticos vindos do mar, vai mostrar no encontro como atua na limpeza costeira e no gerenciamento de resíduos marinhos. Outras startups irão compartilhar experiências de aproveitamento de resíduos de atividades agropecuárias brasileiras, no contexto da química verde. Já Maxim Mintchev, pesquisador da Universidade Técnica de Berlim, na Alemanha, apresentará o Passaporte Digital de Produtos, que permite rastrear informações em todos os processos da economia circular.

Será realizado, ainda, um workshop colaborativo voltado ao mapeamento dos principais atores e das inter-relações necessárias à formação de ecossistemas circulares no Brasil. O objetivo é promover diálogo, propiciar a cocriação e permitir a identificação de oportunidades de produção de valor entre diferentes setores.

Ecossistemas: da teoria à ação

Um dos conceitos centrais do simpósio é a gestão de ecossistemas de inovação: em vez de empresas isoladas que buscam ser mais sustentáveis, é importante ter redes integradas (com pesquisadores, governo, empresas, cooperativas e comunidades). “O CEPID Bridge busca ser essa ponte”, explica Ometto. “A ideia é que o evento não termine em si mesmo. Queremos mapear os ecossistemas necessários, identificar os principais atores, seus papéis e suas atividades para apoiar essas soluções.”

A EESC-USP é pioneira na economia circular no Brasil e a única instituição brasileira reconhecida pela Fundação Ellen MacArthur (que é referência mundial no tema) como parte de sua rede global de universidades circulares. O reconhecimento tem relação com o trabalho transversal da instituição em ensino, pesquisa e extensão, iniciado em 2006. Esse histórico foi fundamental para o CEPID Bridge, que agora lidera a articulação de ecossistemas circulares no país.

Paralelamente, o momento do simpósio não é coincidência: após o encontro, no domingo (09/11), Ometto e Gomes embarcam para Belém (PA) com o objetivo de apresentar as conclusões e propostas construídas em São Carlos na 30ª Conferência das Partes (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), a COP30. Lá, eles vão encontrar a embaixadora da Austrália no Brasil, Sophie Davies, que também participa do simpósio da EESC-USP.

Na COP30, o objetivo é liderar rodas de conversa sobre gestão de múltiplos ecossistemas para inovação regenerativa como forma de levar a perspectiva brasileira de economia circular com forte componente social. “O Brasil é um dos únicos países que têm condições reais de oferecer soluções regenerativas em larga escala”, afirma Ometto. “Temos as áreas, a biodiversidade e o conhecimento tradicional das comunidades. Agora, precisamos de uma nova mentalidade, de novos modelos de negócio que integrem a diversidade e a criação de valor compartilhado.”

Ele se refere a iniciativas como a Biomas e a re.green, que têm modelos de negócio baseados em plantio e recuperação de vegetação nativa, com geração de renda para comunidades locais, enquanto comercializam créditos de carbono. Quando esses projetos são aliados à inclusão social e à biodiversidade, o valor do carbono comercializado aumenta significativamente – o que demonstra que sustentabilidade ambiental e justiça social podem e devem caminhar juntas (leia mais sobre a re.green em https://pesquisaparainovacao.fapesp.br/3807).

Urgência e esperança

Uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada em outubro de 2024, aponta que 85% das indústrias brasileiras já desenvolvem práticas de economia circular. As principais motivações são a redução de custos e a busca por eficiência operacional. Já uma sondagem realizada pela CNI entre 3 e 13 de fevereiro de 2025 mostra que seis em cada dez indústrias adotam práticas de economia circular.

Apesar disso, a conscientização ainda não se traduz em inclusão social efetiva. “Fala-se em fazer isso para as futuras gerações, mas não podemos esperar”, pondera Ometto. “Precisamos implementar esses projetos hoje. Precisamos de inovações radicais nos próximos 10 ou 20 anos.”

Segundo o Atlas do Plástico 2020, 800 mil brasileiros atuam na reciclagem, com apenas 7,5% associados a cooperativas organizadas. “É fundamental que eles tenham mais estrutura, relevância e valor nessa cadeia”, ressalta Lima. “Por isso, o workshop de mapeamento de ecossistemas está no fim do simpósio: queremos que dali saiam propostas concretas de quem precisa fazer o quê, com quem e como.”

Apesar das cifras significativas associadas à economia circular no Brasil, ainda há enorme potencial inexplorado. Dados históricos do setor mostram que, se estruturadas adequadamente, as cooperativas de catadores têm potencial de faturamento expressivo: com a coleta de mais material terão maior capacidade de processá-lo e agregar valor a ele para aumentar a renda dos trabalhadores.

Sem estruturação apropriada, entretanto, muitos catadores usam aplicativos para se conectar a geradores de resíduos que não os remuneram. Esse modelo transfere todas as responsabilidades para o catador e desvaloriza as organizações coletivas de trabalhadores. Além das implicações sociais e de afetar a logística reversa, isso contraria a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), cuja meta é quadruplicar o volume de materiais reciclados nas cooperativas nos próximos anos.

De São Carlos para o mundo

O simpósio terá, ainda, a participação de hubs de inovação social, como o Pimp My Carroça, que desenvolveu o aplicativo Cataki para conectar os atores sociais da cadeia de reciclagem à plataforma Eu Reciclo. A expectativa é que cerca de 150 pessoas compareçam ao encontro ao longo dos dois dias. O evento será gratuito e aberto a interessados cadastrados neste link.

A comissão organizadora, que conta também com a participação da professora Sânia Fernandes, da EESC-USP, pretende criar um plano de ação para guiar as ações práticas a serem implementadas. A colaboração com os diversos atores do ecossistema vai possibilitar que haja soluções efetivas, integração, construção de confiança e governança. “Queremos que o CEPID Bridge seja esse polo magnético de inovação para gestão, integração e desenvolvimento desses ecossistemas para que as soluções realmente floresçam”, resume Ometto. “Precisamos dar continuidade, desenvolver e construir juntos.”

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