Startup paulista desenvolve material biodegradável que se assemelha a galhos, folhas e capim usados por porcas prenhas na natureza para preparar ambiente para o parto (imagem: divulgação/Netrhus)

Ninho artificial melhora bem-estar animal e aumenta produtividade na indústria suína

09 de setembro de 2025

Roseli Andrion | Pesquisa para Inovação – Na natureza, porcas prenhas se afastam do grupo pouco antes do parto e se dedicam a juntar galhos, folhas e capim para construir um ninho e preparar o ambiente para o nascimento. Nesse espaço, darão à luz e protegerão os leitões em seus primeiros dias de vida. No sistema de produção moderno, entretanto, esse instinto quase nunca encontra espaço.

Isso porque, nesses recintos, prevalece a lógica da eficiência: ambientes limpos, higienizados e estruturados para maximizar a produtividade. As porcas passam os últimos dias de prenhez em baias estreitas, conhecidas como celas de parição, cercadas por grades e, muitas vezes, com piso de concreto. Não há terra para cavar, galhos para carregar ou capim para amontoar.

O resultado é um retrato comum para quem convive com esses animais: fêmeas inquietas, que mordem as grades, batem as patas no concreto, esfregam o focinho no chão ou repetem movimentos automáticos. Tudo isso para tentar compensar a impossibilidade de expressar o comportamento instintivo de construir o ninho.

Esse estado de ansiedade afeta a fisiologia do animal, já que provoca aumento da produção de hormônios de estresse, como o cortisol, e redução de substâncias essenciais para um parto tranquilo. As reações das fêmeas expressam o desconforto que elas sentem e têm consequências negativas que ecoam por toda a fase que inclui o parto e a lactação.

Esse cenário incomodava o médico veterinário Matheus Saliba Monteiro, pesquisador na startup Nerthus. Mestre em epidemiologia experimental aplicada às zoonoses e especialista em produção, reprodução, nutrição e sanidade de suínos, ele acompanha de perto a rotina de granjas de suínos.

O profissional conta que, se as fêmeas recebem um punhado de grama ou feno nessa fase, reagem imediatamente. “Elas ficam diferentes: diminuem o comportamento de interação com o piso e de morder as grades, e começam a organizar o material com o focinho”, descreve. “Só que grama e feno causam entupimentos no sistema de esgoto da granja. Por isso, poucas granjas oferecem material para a construção de ninhos, mesmo sabendo dessa necessidade das porcas.”

Segundo ele, esse instinto está presente até em ambientes de criação intensiva. “Elas [as porcas] expressam a necessidade de construir o ninho antes do parto porque querem os filhotes quentinhos e seguros”, aponta. “É importante permitir que o animal faça o que foi programado pela natureza para fazer. E o bônus, que torna tudo isso possível, é saber que a ação traz benefícios econômicos.”

Biodegradável e sustentável

Monteiro destaca que isso ocorre em todo o mundo. A União Europeia, por exemplo, tem diretivas sobre bem-estar animal desde 2008 para orientar produtores a fornecerem material para que as porcas construam o ninho para o parto. Os materiais testados inicialmente, como palha e feno, porém, causam prejuízos e riscos sanitários ao entupirem o sistema de esgoto das granjas. “Todo mundo quer cumprir a lei e, com a nossa solução, isso vai ser possível”, avalia o pesquisador.

Essa solução veio da engenharia de materiais: Marcos Nicolino, especialista em bioplásticos de fontes naturais, aplicou inovação científica para criar um material polimérico biodegradável sustentável, suficientemente resistente para as porcas manipularem e que se desintegra na água. “Com ele, elas podem construir os ninhos, o que reforça o bem-estar animal”, avalia.

Além de oferecer conforto às fêmeas, a inovação não afeta o processo de produção. “Palha, feno e capim funcionam, mas entopem sistemas de esgoto e biodigestores, além de produzirem resíduos difíceis de manejar. Nosso material, ao contrário, se desmancha em contato com água e dejetos — isso impede entupimentos.”

O produto simula galhos: são filamentos extrusados, flexíveis e compridos, que podem ser puxados, mordidos e manipulados pelas fêmeas no período pré-parto. “Quando oferecemos o material à porca, ela manifesta o instinto que está ali, pronto para ser expresso”, diz Monteiro.

Para produzir a formulação, são utilizados resíduos agroindustriais diversos, como o bagaço da cana-de-açúcar e a polpa cítrica. “Trabalhamos com a lógica da economia circular: transformar o que seria descartado em uma solução de alto valor agregado para a produção animal”, descreve Monteiro. “Assim, o lixo vira solução”, completa Nicolino. O projeto teve o apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP.

Os pesquisadores estudam a incorporação de bacteriófagos e probióticos à fórmula para reduzir a necessidade de uso de antibióticos na produção. Outra possibilidade em análise é o aproveitamento dos resíduos do material para aumentar a produção de biogás nos biodigestores das granjas — o que contribui para a produção de energia limpa. “É um projeto que olha para todos os lados: bem-estar animal, impacto ambiental, sustentabilidade e, claro, ganhos econômicos”, resume Nicolino.

Bem-estar animal

O material resiste por 24 a 48 horas – tempo suficiente para que a porca expresse o comportamento instintivo no período crítico antes e durante o parto. “Ela pega aqueles 'galhinhos', espalha pela baia, organiza como quer e fica visivelmente mais calma”, relata Monteiro. “Esse comportamento tão simples faz muita diferença no bem-estar do animal e na fisiologia do parto e da lactação.”

A expressão do comportamento libera hormônios benéficos para a fêmea, como a ocitocina, que melhora as contrações uterinas, e a prolactina, que estimula a produção de leite. O resultado são benefícios visíveis e mensuráveis, que conectam diretamente o bem-estar animal aos ganhos de produtividade.

Os pesquisadores contam que uma meta-análise de artigos científicos do segmento revela que esse comportamento tem impactos positivos. Estudos apontam que, quando as porcas têm acesso a materiais que permitem a expressão desse instinto, os níveis de estresse diminuem, os partos são até 30% mais rápidos e a taxa de sobrevivência dos leitões aumenta.

Isso porque, quando a fêmea está tranquila, o parto ocorre de forma mais natural, com menos riscos para ela e para os filhotes. “Os leitões nascem mais ativos porque sofrem menos tempo as contrações do útero materno durante o parto”, explica Monteiro. “E cada filhote que não morre representa dinheiro no bolso do produtor”, diz Nicolino.

Em termos práticos, isso representa, ainda, além de menos leitões natimortos, desmames mais saudáveis. E tem mais: porcas menos estressadas produzem mais leite, o que faz os leitões ganharem mais peso até o desmame. “São mais animais vivos, filhotes mais pesados e um rebanho mais saudável”, resume Monteiro. “Um estudo com poucos animais comprovou a redução no tempo de parto. Queremos testar em escala maior para comprovar os demais ganhos produtivos.”

Bem-estar geral

Os efeitos podem se estender ao dia a dia da granja. “Um ambiente com menos estresse animal também é menos estressante para os funcionários. Os partos são todos assistidos e, quem os acompanha, tem de lidar com a pressão de manejar vários ao mesmo tempo”, destaca Nicolino. “Quando as fêmeas estão calmas, o processo ocorre de maneira mais fluida, eficiente e natural.”

Com partos mais rápidos, o funcionário pode oferecer assistência a mais fêmeas no mesmo período. “Quando há menos leitões nascidos mortos, o impacto psicológico para quem trabalha na granja é menor, porque o profissional sabe que vai lidar com menos perdas. Parece um detalhe, mas faz diferença no dia a dia”, acrescenta. Em outras palavras, investir em bem-estar animal é investir em qualidade de vida e eficiência dos trabalhadores. “É um aspecto intangível muito importante.”

A Nerthus já apresentou resultados do desenvolvimento na Alemanha e nos Países Baixos, nos quais as discussões sobre bem-estar animal estão mais avançadas. Por lá, a receptividade tem sido grande. “A ideia despertou muita atenção: recebemos contatos de pesquisadores e empresas da Europa, da Austrália e da América Latina”, conta Nicolino.

Um artigo científico publicado sobre o projeto tem atraído interessados. “Um pesquisador do setor de pesquisa de suínos da Austrália nos disse que o artigo chegou lá e nos procurou em busca de mais dados”, revela Nicolino. “Ele até deu dicas sobre os próximos passos da pesquisa.”

Paralelamente, a demanda cresce no Brasil. A instrução normativa 113, de 2020, estabelece boas práticas de manejo e bem-estar animal em granjas de suínos de criação comercial, o que inclui a obrigatoriedade de oferecer materiais de ninho para suínos em sistemas de maternidade — isso abre espaço para soluções práticas e sustentáveis como a da Nerthus. Com isso, grandes frigoríficos e produtores já demonstram interesse na opção.

A adoção em larga escala ainda depende de fatores práticos. Entre eles estão o custo de produção do material, a adaptação dos sistemas de manejo e a aceitação por parte dos produtores. Esses aspectos estão sendo investigados pelos pesquisadores para garantir que a solução seja viável do ponto de vista econômico.

Atualmente, a startup está pré-aprovada para o programa Catalisa, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que busca transformar pesquisas científicas com potencial de inovação em negócios de alto impacto. Nesse processo, a Nerthus pretende fazer testes em escala comercial com parceiros do setor . “A ideia é provar que os benefícios são mantidos quando a solução é aplicada a milhares de animais.”

Futuro mais ético

O diferencial competitivo da Nerthus é dialogar com uma tendência global: alinhar produtividade e bem-estar animal “No futuro, pode haver um selo para indicar que a carne vem de porcas que puderam expressar esse instinto natural, por exemplo”, aponta Nicolino.

A Nerthus pretende que, ainda neste ano, clientes testem o produto comercialmente. A estratégia de longo prazo é ainda mais ambiciosa e alinhada com o ecossistema de inovação: licenciar a tecnologia para empresas do mundo todo. “Não vamos conseguir produzir milhões de toneladas sozinhos”, reconhece Nicolino. “A ideia é licenciar para quem tem estrutura produtiva. A Nerthus vai desenvolver a formulação e adaptar o produto às diferentes realidades de produção, mas a fabricação em larga escala deve ficar com parceiros industriais, no Brasil e no exterior.”

Esse mercado tem potencial para consumir milhares de toneladas anuais só no Brasil, já que essa é uma demanda cada vez mais clara da sociedade: sistemas de produção mais éticos, sustentáveis e transparentes. O potencial de exportação abrange Europa, EUA e Ásia. A meta é que, até o fim de 2026, o produto esteja disponível, inicialmente em caráter experimental e, depois, em escala comercial.