Startup brasileira cria vacina terapêutica para combater doença negligenciada
28 de outubro de 2025Roseli Andrion | Pesquisa para Inovação – Para muitos tutores de cães, a notícia de que seu animal foi diagnosticado com leishmaniose visceral canina vem acompanhada de uma sentença dolorosa: a eutanásia do animal. A enfermidade, que é uma zoonose, tem grande impacto em saúde pública e pode levar a óbito em até 90% dos casos se não for tratada.
A enfermidade faz parte do grupo de doenças tropicais negligenciadas, ou seja, aquelas que recebem menos investimentos em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos e vacinas, apesar de afetarem milhões de pessoas em países em desenvolvimento. No Brasil, ela ainda é associada a desigualdades regionais e atinge mais gravemente áreas rurais e comunidades vulneráveis. Não à toa, Maranhão, Piauí, Ceará, Bahia, Pará, Minas Gerais, Tocantins e Mato Grosso do Sul são os Estados mais afetados, com alta incidência de novos casos.
Atualmente, o Ministério da Saúde (MS) indica a eutanásia de cães diagnosticados com a doença. No caso de animais com tutores, a prática traz não apenas dor emocional às famílias, mas também pouca efetividade no controle da doença. “Não é fácil para eles sacrificarem seus animais. Muitas vezes, eles os mantêm em casa e não tomam as medidas necessárias”, afirma a doutora em bioquímica e biologia molecular Reysla Mariano.
Alta taxa de transmissão
Entre 2011 e 2020, por exemplo, foram confirmados no Brasil mais de 33 mil casos de leishmaniose – uma média de 3,3 mil por ano –, segundo dados do MS. A forma visceral da doença, mais grave e potencialmente fatal, apresentou média de 2 mil casos notificados anualmente. Por ser uma zoonose, a leishmaniose visceral conecta a saúde animal à humana: assim, a falta de controle em cães reflete diretamente em novos casos entre pessoas.
As medidas preventivas existentes atualmente incluem o uso de coleiras repelentes e inseticidas, mas a eficácia dessas opções é limitada. “Mesmo com essas estratégias, a gente ainda tem uma alta taxa de transmissão”, destaca Mariano. Para o MS, trata-se de um desafio de saúde pública, especialmente quando envolve cães de rua e o controle se torna praticamente impossível.
A doença é transmitida por um vetor específico: o flebotomíneo, popularmente conhecido como mosquito-palha. Quando esse inseto pica um cão infectado e, em seguida, um ser humano, pode transmitir o parasito causador da leishmaniose a ele. “O animal é um reservatório do parasito”, lembra Mariano. “Para evitar a disseminação, é necessário que haja uma medida de controle eficaz.”
Formulação inédita
É justamente o desenvolvimento dessa fórmula o objeto de estudo do grupo de pesquisa do professor Rodolfo Giunchetti, veterinário experiente no segmento de vacinas contra leishmaniose visceral canina e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A trajetória acadêmica de Mariano a levou até ele e lá ela se dedicou à pesquisa para o desenvolvimento da vacina terapêutica. “Desde o doutorado, eu já pesquisava doenças negligenciadas”, lembra.
O diferencial da vacina desenvolvida pelo grupo é seu mecanismo de ação: é uma abordagem que impede que a infecção se espalhe ao induzir uma resposta imunológica no cão com leishmaniose visceral, que evita que o parasito seja transmitido ao inseto vetor. Isso significa que, se o mosquito-palha picar um cão vacinado, o parasito não poderá ser transmitido. “Tivemos muito sucesso com as provas de conceito e os testes preliminares”, diz Mariano.
A pesquisadora lembra que a criação de vacinas contra parasitos é mais complexa do que aquelas contra vírus ou bactérias. Isso porque parasitos como a Leishmania usam estratégias sofisticadas de evasão do sistema imunológico. Essa dificuldade explica por que, até hoje, o mercado ainda não oferece soluções consolidadas nessa área.
Por isso, a tecnologia representa um avanço significativo. E o potencial impacto da formulação vai além da saúde animal: como a leishmaniose visceral canina é um desafio de saúde pública que afeta humanos, sua prevenção interessa ao próprio MS. O projeto teve apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP.
A criação da vacina terapêutica contra a leishmaniose visceral canina ilustra o potencial da ciência brasileira. Para que ela progrida, entretanto, é necessário que haja convergência entre pesquisa de qualidade, políticas públicas de fomento, infraestrutura adequada e visão empreendedora.
Filial em São Paulo
O desenvolvimento do imunobiológico inclui fases sucessivas de testes clínicos, com rigor regulatório e custos altos. Os testes da fase 2 estavam programados para ocorrer em municípios do norte de Minas Gerais, que compõem uma região endêmica próxima a Montes Claros. “As regiões mais atingidas são aquelas um pouco mais negligenciadas, com falta de recursos”, descreve a pesquisadora. “Além disso, são locais com menos acesso à informação.”
Para dar continuidade ao processo, então, a startup abriu uma filial em São Paulo. E o apoio para isso veio do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai): a instituição, que é frequentemente associada apenas à formação técnica, tem uma vertente de apoio à inovação. Para isso, mantém um laboratório avançado de biotecnologia, com equipamentos que permitem de manipulações moleculares a ensaios clínicos em escala laboratorial.
Mariano comenta que o Instituto Senai de Inovação (ISI) em Biotecnologia desempenhou papel fundamental no progresso da pesquisa. “Eles têm uma estrutura muito boa que nos deu suporte e condição para continuar a pesquisa iniciada em Minas Gerais”, descreve. “Para nós, o Senai ofereceu a oportunidade de transformar a pesquisa básica em algo mais aplicável, que pudesse ser comercializado.”
Futuro da pesquisa
Os cientistas envolvidos no projeto buscam completar os testes clínicos da vacina terapêutica, um processo que pode levar anos e que requer investimentos significativos. A expectativa é que, uma vez comprovada a eficácia da fórmula, a tecnologia seja licenciada para empresas farmacêuticas veterinárias. “O objetivo sempre foi desenvolver a tecnologia e transferi-la.”
A pandemia de COVID-19 demonstrou como a dependência de insumos e tecnologias estrangeiras pode paralisar a ciência e a saúde no Brasil. “Durante a pandemia, percebemos que é importante valorizar produtos nacionais e pesquisadores brasileiros. Quando tudo foi fechado, ficamos sem acesso a muitos itens.” No campo das doenças negligenciadas, essa dependência é ainda mais crítica, já que o interesse comercial por elas costuma ser baixo.
Notícias
- Dispositivo pode detectar aditivo proibido em vinho, suco de laranja e água mineral
- Grupo cria mel ‘sabor chocolate’ usando casca da amêndoa do cacau
- 9° Prêmio Nacional de Inovação vai prestigiar empresas beneficiadas pela Lei do Bem
- Biossensor identifica na saliva proteína ligada à depressão e esquizofrenia
Agenda
Chamadas
-
Ministério Federal de Pesquisa, Tecnologia e Espaço da Alemanha - Bioeconomia
Prazo: 07/11 -
Estratégias de Manejo, Uso e Conservação das Unidades de Conservação Federais Marinhas do Estado de São Paulo
Prazo: 14/11 -
Chamada de Propostas – Programa de Pesquisa em Políticas Públicas (PPPP) 2025/2026
Prazo: 15/11 (pré-propostas fase 1) -
Redes FAPESP de Colaboração em Pesquisa em Sistemas Alimentares Saudáveis - Gripe Aviária
Prazo: 28/11 -
Chamada de Propostas FAPESP e Universidade da Guiana
Prazo: 01/12 -
Centros Urbanos - Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais
Prazo: 30/01/2026 -
Cooperação São Paulo-Espanha para Projetos de Pesquisa e Inovação: Segunda Chamada de Propostas 2025-26
Prazo: 31/03/2026 -
Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE)
Fluxo contínuo -
PIPE-FAPESP Transferência de Conhecimento (PIPE-TC)
Fluxo contínuo -
BBSRC Pump-Priming Award (FAPPA) - Biotecnologia
Fluxo contínuo