Startup cria canas transgênicas mais resistentes a pragas
19 de janeiro de 2021Suzel Tunes * | Pesquisa para Inovação – Responsável por prejuízos estimados em R$ 5 bilhões a cada safra, a maior ameaça à cultura da cana-de-açúcar no Brasil é um inseto-praga com pouco mais de 20 milímetros de comprimento: a mariposa Diatraea saccharalis em sua fase larval, mais conhecida como broca-da-cana. Para combatê-la, a empresa paulista PangeiaBiotech utiliza organismos ainda menores e ferramentas da engenharia genética. A startup desenvolve variedades de cana transgênica que associam a expressão de duas proteínas bioinseticidas da bactéria Bacillus thuringiensis (Bt) com um gene extraído de outro microrganismo, Agrobacterium sp., que confere maior tolerância ao herbicida glifosato. Genes da bactéria Bt são empregados em processos de transgenia de diversas plantas visando ao controle biológico de pragas há mais de duas décadas.
Batizada de BtRR, a tecnologia foi desenvolvida com apoio do Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que está realizando testes em seus campos experimentais de Brasília. O próximo passo é encontrar parceiros comerciais interessados no licenciamento da tecnologia. A intenção da startup é lançar a primeira variedade no mercado até o plantio da safra 2022/23. “Esperamos ter 20% da área plantada do Brasil com nossas canas transgênicas até 2030”, estima o engenheiro-agrônomo Paulo Cezar de Lucca, idealizador do projeto e da empresa, criada em 2015.
A cana transgênica da startup, abrigada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica (Incamp) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não é a primeira do país. O pioneirismo coube à variedade CTC20BT, nascida nos laboratórios do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), entidade mantida por produtores e empresas do setor sucroenergético em Piracicaba (SP). A CTC20BT foi aprovada em 2017 pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), instituição que avalia organismos geneticamente modificados (OGM). No ano seguinte, o CTC teve a segunda variedade transgênica aprovada: CTC9001BT. Essas duas variedades também empregam um gene da bactéria Bt, cuja finalidade é expressar uma proteína do grupo Cry, de ação bioinseticida. Ao serem ingeridas pela praga, as proteínas ligam-se a receptores do intestino do inseto, causando danos no sistema digestivo que são fatais.
As novas variedades da PangeiaBiotech dão um passo adiante na evolução tecnológica da cana ao utilizar duas proteínas Cry diferentes. “A dupla transgenia já existia em culturas como as do milho e da soja. Estamos agora trazendo para a cana”, esclarece de Lucca. Para o agrônomo Hugo Molinari, pesquisador da Embrapa Agroenergia e participante do projeto, o emprego de duas proteínas com propriedades inseticidas proporciona maior durabilidade à tecnologia, reduzindo o risco de evolução de resistência.
Além da dupla transgenia, as variedades desenvolvidas pela startup paulista incorporam o gene cp4-epsps da Agrobacterium sp., tolerante ao herbicida glifosato. A bactéria é encontrada naturalmente no solo. “A resistência ao glifosato é inovadora na cultura de cana. O agricultor passará a usar menos defensivo na produção. Não há no mercado cana resistente simultaneamente à broca-da-cana e ao herbicida glifosato”, destaca de Lucca.
Ele explica que atualmente o produtor precisa combater as plantas daninhas fazendo aplicações de herbicida entre as linhas de cana, com muito cuidado, pois o produto pode danificar a lavoura. Nesse trabalho, utilizam-se tratores, numa operação demorada e cara, sobretudo devido ao custo do óleo diesel. “Se a cana for resistente ao herbicida, o produtor pode fazer pulverização aérea, economizando combustível”, diz o criador da PangeiaBiotech. Também há economia de defensivos, afirma Molinari.
Outra inovação em desenvolvimento da PangeiaBiotech é a produção de cana transgênica que, além da resistência à broca e ao glifosato, será resistente ao besouro Sphenophorus levis, conhecido como bicudo. “Com a mecanização, a cana passou a ser colhida crua – e não mais por meio da queima do canavial –, o que aumentou a incidência de pragas, entre elas Sphenophorus e a cigarrinha. Elas morriam quando se queimava a plantação; agora se alojam na palhada e se multiplicam”, explica Molinari. Segundo o pesquisador, os prejuízos causados pelo bicudo são estimados em R$ 2 bilhões por ano no Brasil e ainda não há controle químico ou biológico de grande eficiência.
Quando tiver colocado as variedades BtRR no mercado, a PangeiaBiotech terá consolidado uma mudança em seu modelo de negócio. Segundo de Lucca, o propósito inicial da empresa era oferecer serviços de transformação genética de plantas, dentro do conceito norte-americano de Plant Transformation Facility, que ainda não existia no Brasil. “Esse projeto se concretizou. Já atendemos cerca de 25 centros de pesquisa no Brasil. Eles enviam o gene de interesse e devolvemos as plantas modificadas quatro meses depois. Dessa forma, o pesquisador pode focar na descoberta de novos genes e ver a resposta de sua teoria em pouco tempo”, conta de Lucca. Além da cana, a startup realiza transformação genética de tabaco, tomate e milho.
Em 2017, da relação da empresa com a Embrapa Agroenergia, na época um de seus clientes, nasceu o projeto de cana com dupla transgenia e uma mudança no plano de negócio. “A parceria com a Embrapa nos permitiu dar um grande salto. Agora, a ideia é produzir nossas próprias variedades”, planeja de Lucca. O empresário pretende continuar a prestação de serviços.
Entre os clientes, estão o Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp, o Centro de Cana do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e a Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa), que reúne 10 universidades federais. Segundo Monalisa Sampaio Carneiro, professora do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que integra a rede, a Ridesa é responsável pelo desenvolvimento de mais da metade das variedades cultivadas no país, que são obtidas por técnicas de melhoramento genético, ou seja, pelo cruzamento de variedades de plantas. Agora, a Ridesa recorre aos serviços de transformação da PangeiaBiotech para a obtenção de versões transgênicas de suas variedades. “Recebendo a planta já transformada geneticamente pela PangeiaBiotech, pesquisadores e empresas que trabalham com melhoramento de cana podem economizar até dois anos em suas pesquisas”, afirma a pesquisadora.
José Antônio Bressiani, engenheiro-agrônomo e diretor agrícola da empresa de biotecnologia GranBio, também contou com os serviços da PangeiaBiotech para o desenvolvimento de uma variedade de cana-energia transgênica, atualmente em testes de campo. Mais rústica e com maior teor de fibras, a cana-energia é utilizada para a produção de etanol de segunda geração, obtido da palha e do bagaço. As variedades comercializadas foram criadas por meio de melhoramento genético. Agora, a empresa planeja lançar uma cana-energia transgênica, com resistência à broca e a herbicida – o projeto conta, igualmente, com a participação da PangeiaBiotech. Paralelamente, desenvolve outra variedade de cana-energia transgênica, com genes para resistência à seca e para aumento de biomassa, também com apoio da FAPESP.
Para o engenheiro-agrônomo Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, startups como a PangeiaBiotech podem ter um papel-chave no desenvolvimento do setor sucroenergético brasileiro, com foco no mercado mundial de biocombustíveis. “Pequenas e ágeis, as startups têm grande capacidade de inovar”, destaca.
Coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão da Unicamp desde sua criação, em 1997, e cientista-chefe da GranBio entre 2012 e 2016, Pereira observa que, nos últimos anos, o melhoramento genético da cana não tem garantido os saltos de produtividade observados em outras culturas, como milho, soja e trigo, após o desenvolvimento de variedades transgênicas. “Existe um limite para o melhoramento genético tradicional”, explica o pesquisador. “Uma nova planta demora cerca de 10 anos para ser produzida, enquanto uma nova variante de um microrganismo capaz de atacá-la pode surgir em dias.” Com a transgenia, afirma Pereira, é possível desenvolver variedades resistentes – e, portanto, mais produtivas – a novas doenças em menor tempo quando comparado ao trabalho de melhoramento genético convencional.
Embora existam centenas de variedades de cana criadas conforme as diferentes condições de clima e solo – das quais cerca de 20 dominam o mercado –, a produtividade tem se mantido mais ou menos estável nos últimos anos. A PangeiaBiotech espera contribuir para a mudança desse cenário um quarto de século depois do surgimento das primeiras variedades Bt nas lavouras de milho e algodão norte-americanas.
Há uma explicação comercial e outra científica para esse atraso, na opinião dos pesquisadores. Molinari, da Embrapa Agroenergia, diz que a cultura de cana-de-açúcar, embora importante para nossa matriz energética, não representa um mercado grande o suficiente para interessar multinacionais a investir em pesquisa. “A cultura de cana não é global; seu plantio é restrito aos trópicos. Diante do mercado gigante da soja ou trigo, ela é pequena.”
A justificativa científica deriva da própria complexidade do objeto de estudo. “O genoma da cana é muito mais complexo e extenso do que o de outras plantas”, destaca o biólogo Michael dos Santos Brito, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Não por acaso, foi apenas no final de 2019 que se concluiu o sequenciamento mais completo do genoma da planta: 373.869 genes mapeados, correspondendo a 99,1% do total.
O sequenciamento foi resultado do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN), lançado em 2008 para estimular a produção de bioenergia no Brasil. É também no âmbito do BIOEN que Brito desenvolve um projeto para identificar e caracterizar novos promotores de cana, sequências do DNA responsáveis por regular a expressão do gene. Com esse projeto, ele pretende criar um banco de dados que possa ser útil a pesquisas posteriores. “A cana-de-açúcar não é uma planta simples; são necessários muitos recursos para sua pesquisa. Precisamos aproveitar o know-how que desenvolvemos até agora e que nos coloca à frente do mundo inteiro”, sentencia.
* Revista Pesquisa FAPESP
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