Startup apoiada pelo PIPE-FAPESP desenvolve tecnologia inédita que busca democratizar exames do sistema digestivo com procedimento simples, rápido e acessível (imagem: divulgação/Paix Medical)

Marcador magnético promete revolucionar o diagnóstico gastrointestinal

02 de dezembro de 2025

Roseli Andrion | Pesquisa para Inovação – Em um consultório médico comum, sem equipamentos caros ou salas especiais, um paciente com queixas gastrointestinais recebe um comprimido. Não é um medicamento: é um marcador magnético que, nos minutos seguintes, permitirá ao médico mapear em tempo real o funcionamento de todo o sistema digestivo. Essa cena, que parece ficção científica, está cada vez mais próxima de se tornar realidade graças ao trabalho de pesquisadores brasileiros.

Desenvolvida pela startup Paix Medical, com apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP, a tecnologia nasceu em laboratórios acadêmicos e, em breve, pode se tornar um produto comercial com potencial para alcançar mercados internacionais. “É uma ferramenta complementar que pode estar no consultório”, explica Caio Quini, físico médico cofundador da empresa. “O paciente engole um comprimido [um marcador magnético] e o médico pode avaliar se há alguma anormalidade no funcionamento do sistema digestivo.”

A ideia surgiu quando Quini e o físico Fabiano Paixão atuavam juntos no mesmo laboratório de pesquisa no desenvolvimento de equipamentos e instrumentação médica para o trato gastrointestinal. “Durante o mestrado, o doutorado e o pós-doutorado desenvolvemos sensores e marcadores magnéticos”, conta. “Em determinado momento, pensamos: ‘se auxiliam nossas pesquisas, podem ser extremamente úteis em consultórios médicos e hospitais’.”

O princípio da tecnologia é engenhoso e simples: funciona de maneira semelhante à medicina nuclear, técnica em que pacientes recebem marcadores radioativos monitorados por detectores externos. A diferença crucial é a ausência de radiação: em vez de substâncias radioativas, a Paix Medical utiliza marcadores magnéticos atóxicos, cuja localização precisa é detectada por sensores magnéticos posicionados externamente ao corpo do paciente.

Diagnósticos rápidos

O sistema permite avaliar parâmetros fisiológicos do trato gastrointestinal. “Conseguimos identificar se o movimento no estômago e no intestino está dentro do padrão esperado”, explica. “É possível, ainda, verificar se o marcador chega aonde deve chegar ou se permanece tempo demais em determinada região. Depois, o marcador é eliminado naturalmente pelo organismo, sem nenhum efeito adverso.”

A rapidez também impressiona: do esôfago ao estômago, a passagem é praticamente instantânea. Já o tempo de esvaziamento gástrico e o trânsito intestinal variam de pessoa para pessoa: e é justamente isso que o exame avalia e permite comparar os resultados individuais com parâmetros de normalidade estabelecidos. “Se o marcador permanece tempo demais no estômago, pode indicar retardo no esvaziamento gástrico. Se passa muito rápido pelo intestino, pode sugerir alterações na motilidade. São informações valiosas para o diagnóstico.”

A partir disso, é possível avaliar o esvaziamento gástrico, a motilidade intestinal e outros fatores. Segundo a Organização Mundial de Gastroenterologia, distúrbios funcionais do trato gastrointestinal afetam cerca de 40% da população mundial em algum momento da vida. No Brasil, estudos epidemiológicos indicam que até 35% dos brasileiros sofrem com sintomas gastrointestinais funcionais — muitos ainda sem diagnóstico adequado em razão da dificuldade de acesso a exames especializados.

A proposta da tecnologia da Paix Medical não é substituir equipamentos hospitalares já estabelecidos: é oferecer uma alternativa complementar para ampliar o acesso ao diagnóstico. “É como uma segunda opção diagnóstica”, esclarece Quini. “É uma ferramenta com uso simples e prático que o médico pode ter no consultório. Se há uma suspeita que precisa ser investigada, é possível realizar o exame ali mesmo, na hora, sem necessidade de agendamento prévio ou preparação especial do paciente.”

Assim, enquanto exames como ressonância magnética e tomografia permanecem essenciais para casos complexos que exigem imagens detalhadas, a medicina magnética permite a triagem e a avaliação funcional em ambientes de atendimento primário. A diferença fundamental está na logística e na acessibilidade: os exames de imagem tradicionais requerem estrutura hospitalar específica e a medicina magnética pode estar em ambientes clínicos convencionais.

Democratização do acesso

O potencial impacto social da tecnologia é significativo: se a opção estiver disponível em consultórios de atenção primária, comunidades que hoje precisam deslocar pacientes para centros urbanos para realizar exames especializados podem ter acesso a diagnósticos gastrointestinais localmente. “Isso é especialmente relevante no contexto brasileiro, com grandes disparidades regionais no acesso a tecnologias médicas”, observa Quini.

Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) apontam que a distribuição de equipamentos de diagnóstico por imagem no Brasil é altamente concentrada nas regiões Sul e Sudeste, enquanto vastas áreas do país têm acesso limitado a eles. A tecnologia da startup representa, assim, uma potencial ferramenta de equidade em saúde, capaz de levar diagnósticos de qualidade a regiões onde grandes equipamentos hospitalares são escassos ou inexistentes.

O custo também é um diferencial importante: mesmo na fase de protótipo, a opção já se mostra mais acessível que tecnologias tradicionais. “Quando conseguirmos produzir em escala, o preço será ainda menor”, projeta. No Brasil, um exame de ressonância magnética pode custar entre R$ 800 e R$ 2.500, enquanto estudos de esvaziamento gástrico por medicina nuclear variam de R$ 600 a R$ 1.500 – esses valores representam barreira significativa para grande parte da população.

A tecnologia já é protegida por patente. “Nesse formato específico, somos os únicos que têm essa solução.” Essa exclusividade tecnológica representa uma vantagem competitiva significativa em um mercado que busca constantemente alternativas complementares para diagnósticos médicos.

Perspectivas

O percurso entre a pesquisa acadêmica e o produto comercial, no entanto, não foi simples. Parte do processo ocorreu durante a pandemia de COVID-19, o que atrasou o desenvolvimento. “A construção do hardware foi mais tranquila, pois já tínhamos bastante experiência. Já a transição do ambiente acadêmico, que aceita soluções parciais, para o universo corporativo, que requer produtos finalizados e robustos, foi bastante desafiadora”, reconhece Quini.

O desenvolvimento passou por várias fases: começou com a prova de conceito para confirmar que o sistema funcionava, passou pela construção tanto do hardware quanto do software e chegou aos testes exigidos para equipamentos médicos. Atualmente, a startup desenvolve o software do sistema e estabelece parcerias para as validações finais em modelos animais e humanos.

A cirurgiã Beatriz Turquiai Luca Blasio, sócia da empresa, lidera estudos clínicos em parceria com centros de pesquisa e hospitais na Inglaterra e em outros países europeus. “A ideia é ter uma validação global, não ficar restrito à realidade brasileira”, declara Quini. Essa estratégia de internacionalização desde as fases iniciais demonstra a ambição da startup em competir no mercado global de soluções médicas.

Quini não informa uma data exata para o lançamento comercial do produto – isso depende da conclusão dos testes de validação em andamento. “Queremos garantir que a opção atenda aos mais altos padrões de qualidade e segurança”, reforça. “As validações em parceria com centros internacionais são cruciais para isso.”

Durante a pesquisa, a equipe testou diferentes apresentações do marcador: comprimidos tradicionais, cápsulas com dissolução controlada para liberação lenta ou rápida e até marcadores incorporados em soluções líquidas semelhantes a iogurtes. “Testamos associações entre diferentes propriedades fisiológicas e as respostas dos marcadores”, detalha o pesquisador.

Cada tipo de formulação permite avaliar aspectos diferentes da fisiologia gastrointestinal, ao adaptar-se às necessidades específicas de cada tipo de diagnóstico. “Por exemplo, cápsulas com dissolução lenta permitem avaliar o processo de esvaziamento gástrico de forma diferente dos comprimidos tradicionais. Já os marcadores em solução líquida respondem de maneira distinta porque o processo de esvaziamento de líquidos pelo estômago segue uma dinâmica própria.”

Outras possibilidades

A versatilidade da tecnologia vai além do trato gastrointestinal. Durante seu pós-doutorado, Quini pesquisou a detecção e o monitoramento de nanopartículas magnéticas em solução líquida. “O produto era parecido, com algumas mudanças técnicas, mas o objetivo e a aplicação eram totalmente diferentes”, conta. “Fizemos estudos para avaliar fluxo cardíaco, fluxo renal e até perfusão cerebral.”

As nanopartículas magnéticas, cujo tamanho é extremamente reduzido, podem alcançar praticamente qualquer região do organismo. Há, portanto, possibilidades de diagnósticos em diversas especialidades médicas. “O princípio físico e a ideia são parecidos, mas são necessárias configurações diferentes para cada aplicação específica”, descreve Quini. “Para nanopartículas, por exemplo, os sensores devem ser muito mais sensíveis para detectar concentrações bem menores de material magnético.”

Dessa forma, a tecnologia desenvolvida pela Paix Medical tem potencial para se transformar em uma plataforma diagnóstica multiaplicável, em vez de apenas uma solução pontual para gastroenterologia. O grupo de pesquisa já pensa na exploração dessas diferentes aplicações.

União de competências

O sucesso do projeto se deve, em grande parte, à formação interdisciplinar da equipe. Quini é físico médico, com mestrado e doutorado em biologia geral e aplicada, com ênfase em processamento de sinais e imagens. Já Paixão tem ampla experiência em circuitos eletrônicos e no desenvolvimento de instrumentação. “Ele sempre atuou em desenvolvimento de instrumentos e eu, na aplicação disso para testes e experimentação”, conta.

Essa complementaridade de habilidades foi fundamental para o projeto. “Foi legal fazer o processo inverso”, reflete. “Não apenas entender como um sensor mede parâmetros fisiológicos, mas pensar: ‘Quero capturar essa propriedade fisiológica específica. O que preciso construir para isso?’ Foi um processo bem interessante.”

O fato de a solução da Paix Medical ter sido desenvolvida no Brasil adiciona um motivo extra de orgulho para a comunidade científica nacional. “É gratificante que anos de pesquisa acadêmica se transformem em algo que pode realmente ajudar as pessoas”, reflete Quini. “Poder fazer isso no Brasil mostra o potencial que temos quando há investimento em ciência e inovação.”